“- Tudo bem tio?”
“- Melhor do que mereço!”
Era assim que meu tio Aury,
de saudosíssima memória, respondia sempre quem o cumprimentava, uma frase
simples, aparentemente despretensiosa, mas de uma profundidade teológica tremenda.
Ele reconhecia
cotidianamente que nada do que temos ou somos é por nosso merecimento e se dependêssemos
dos nossos méritos a situação não seria nada boa.
A religião comoditizada
Deus,
tem misericórdia de mim, que sou pecador’. Lucas 18:13
Me lembrei muito dessa
frase durante um curso de filosofia da religião que fiz recentemente,
especialmente no tópico sobre a comoditização da religião.
O termo comoditização se refere a tornar algo
palatável ao gosto do freguês, é a transformação de bens e serviços (ou coisas que
podem não ser normalmente percebidos como bens e serviços) em um
produto.
Isso se aplica a ideias, identidade, seres humanos e, claro,
também à religião (qualquer religião).
No caso específico das religiões, o modelo típico dessa
produtização é a prática de atenuar elementos que o mercado (pessoas) julguem desagradáveis.
Em um mundo narcisista, hedonista e tomado pelo orgulho da
vaidade, ninguém gosta de ouvir que somos miseráveis, pecadores e merecedores
de castigo, e se não o recebemos estamos melhor do que merecemos.
Redenção não é mais objeto das pregações que preferem adular
o ego dos seus crentes fazendo-os crer que são melhores do que eles pensam.
Demanda do mercado
E não vos conformeis com
este mundo.. Romanos 12:2
As igrejas (e não excluo a
minha dessa constatação) há tempos resolveram promover adaptações para atrair e
agradar o seu público.
Não me refiro às questões
meramente litúrgicas, pois essas são apenas a casca da noz, ainda que as
modificações aqui também sejam reflexo dessa comoditização.
As próprias doutrinas passaram
a adaptar e “interpretar” da forma mais conveniente a seus públicos o que era
considerado como revelação. Verdades, antes absolutas, tornaram-se contextuais
e relativas.
Especialmente aquelas que
colocavam o ser humano em seu devido lugar.
E o mercado religioso
passou a ter que lidar com fenômenos típicos dos mercados comerciais.
Captação de clientes (ops,
fiéis) de acordo com perfis segmentados. Retenção de membros que começaram a
pular de galho em galho (ops, de igreja em igreja) procurando a que mais lhe
agradasse.
Os crentes deixaram de ser
fiéis a uma doutrina e passaram a ser fiéis a pastores, padres, rabinos e
outros sacerdotes, como tanto são fiéis ao músico de sua preferência.
Literalmente criaram os seus fã clubes seguindo influenciadores religiosos.
A ponto de defenderem seus
ídolos mesmo quando descobria-se que tinham perpetrado atos escabrosos.
Nenhuma novidade
Antes que alguém resolva
satanizar o mercado ou o sistema capitalista, é bom lembrar que essa questão
não é exatamente um fenômeno recente.
Arão moldou um bezerro de
ouro no Sinai, a pedido do seu público cansado de esperar a volta de Moisés do
monte.
Samuel ungiu Saul para o
povo que queria um rei (porque afinal, todos os povos ao redor tinham um), e
Deus concordou sabendo que iam sofrer nas mãos desses reis.
Os profetas judaicos
pregavam continuamente contra a idolatria acomodada aos costumes dos povos
vizinhos.
Paulo, citado acima, já
chamava a atenção das igrejas para não se conformar (tomar a forma, amoldar-se)
ao mundo que as cercava.
Não sei o que diria Maomé
para Dalal AlDoub, que tem 2,4 milhões de
seguidores no Instagram, e mostra um estilo de vida ligado à moda, à
modernidade, ao conforto e também à religião, mas certamente não imagino algo
muito diferente das recomendações judaico-cristãs citadas.
A noite escura da alma
Pois
mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram mais a criatura do
que o Criador, que é bendito eternamente Romanos 1:25
No seu poema “A noite escura da alma”, João
da Cruz, sacerdote carmelita do século XVI, escreve a que a alma precisa se
desnudar do apego a si mesma e às criaturas, pois, “não se pode vir a esta
união sem grande pureza, e essa pureza não se alcança sem grande desprendimento
de todas as coisas criadas” (Noite 2,24)
Nesse mundo em que cada um se acha o centro do mundo e a
última bolacha do pacote, a religião que pregar o desapego a si mesmo, a pureza
e a viagem ao seu inferno interior para alcançar a redenção, certamente não vai
ser popular.
Já dizer que cada um é um universo maravilhoso, que todos
podem alcançar a felicidade por suas próprias qualidades e que não precisa se
comprometer com nada além do amor próprio, certamente é uma garantia de
audiência (e receita).
Da minha parte, fico com o tio Aury e com o publicano.