terça-feira, 15 de junho de 2021

Sem redenção




 “- Tudo bem tio?”

“- Melhor do que mereço!”

Era assim que meu tio Aury, de saudosíssima memória, respondia sempre quem o cumprimentava, uma frase simples, aparentemente despretensiosa, mas de uma profundidade teológica tremenda.

Ele reconhecia cotidianamente que nada do que temos ou somos é por nosso merecimento e se dependêssemos dos nossos méritos a situação não seria nada boa.

A religião comoditizada

Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador’. Lucas 18:13

Me lembrei muito dessa frase durante um curso de filosofia da religião que fiz recentemente, especialmente no tópico sobre a comoditização da religião.

O termo comoditização se refere a tornar algo palatável ao gosto do freguês,  é a transformação de bens e serviços (ou coisas que podem não ser normalmente percebidos como bens e serviços) em um produto.

Isso se aplica a ideias, identidade, seres humanos e, claro, também à religião (qualquer religião).

No caso específico das religiões, o modelo típico dessa produtização é a prática de atenuar elementos que o mercado (pessoas) julguem desagradáveis.

Em um mundo narcisista, hedonista e tomado pelo orgulho da vaidade, ninguém gosta de ouvir que somos miseráveis, pecadores e merecedores de castigo, e se não o recebemos estamos melhor do que merecemos.

Redenção não é mais objeto das pregações que preferem adular o ego dos seus crentes fazendo-os crer que são melhores do que eles pensam.

Demanda do mercado

E não vos conformeis com este mundo.. Romanos 12:2

As igrejas (e não excluo a minha dessa constatação) há tempos resolveram promover adaptações para atrair e agradar o seu público.

Não me refiro às questões meramente litúrgicas, pois essas são apenas a casca da noz, ainda que as modificações aqui também sejam reflexo dessa comoditização.

As próprias doutrinas passaram a adaptar e “interpretar” da forma mais conveniente a seus públicos o que era considerado como revelação. Verdades, antes absolutas, tornaram-se contextuais e relativas.

Especialmente aquelas que colocavam o ser humano em seu devido lugar.

E o mercado religioso passou a ter que lidar com fenômenos típicos dos mercados comerciais.

Captação de clientes (ops, fiéis) de acordo com perfis segmentados. Retenção de membros que começaram a pular de galho em galho (ops, de igreja em igreja) procurando a que mais lhe agradasse.

Os crentes deixaram de ser fiéis a uma doutrina e passaram a ser fiéis a pastores, padres, rabinos e outros sacerdotes, como tanto são fiéis ao músico de sua preferência. Literalmente criaram os seus fã clubes seguindo influenciadores religiosos.

A ponto de defenderem seus ídolos mesmo quando descobria-se que tinham perpetrado atos escabrosos.

Nenhuma novidade

Antes que alguém resolva satanizar o mercado ou o sistema capitalista, é bom lembrar que essa questão não é exatamente um fenômeno recente.

Arão moldou um bezerro de ouro no Sinai, a pedido do seu público cansado de esperar a volta de Moisés do monte.

Samuel ungiu Saul para o povo que queria um rei (porque afinal, todos os povos ao redor tinham um), e Deus concordou sabendo que iam sofrer nas mãos desses reis.

Os profetas judaicos pregavam continuamente contra a idolatria acomodada aos costumes dos povos vizinhos.

Paulo, citado acima, já chamava a atenção das igrejas para não se conformar (tomar a forma, amoldar-se) ao mundo que as cercava.

Não sei o que diria Maomé para Dalal AlDoub, que tem 2,4 milhões de seguidores no Instagram, e mostra um estilo de vida ligado à moda, à modernidade, ao conforto e também à religião, mas certamente não imagino algo muito diferente das recomendações judaico-cristãs citadas.

A noite escura da alma

Pois mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador, que é bendito eternamente Romanos 1:25

No seu poema “A noite escura da alma”, João da Cruz, sacerdote carmelita do século XVI, escreve a que a alma precisa se desnudar do apego a si mesma e às criaturas, pois, “não se pode vir a esta união sem grande pureza, e essa pureza não se alcança sem grande desprendimento de todas as coisas criadas” (Noite 2,24)

Nesse mundo em que cada um se acha o centro do mundo e a última bolacha do pacote, a religião que pregar o desapego a si mesmo, a pureza e a viagem ao seu inferno interior para alcançar a redenção, certamente não vai ser popular.

Já dizer que cada um é um universo maravilhoso, que todos podem alcançar a felicidade por suas próprias qualidades e que não precisa se comprometer com nada além do amor próprio, certamente é uma garantia de audiência (e receita).

Da minha parte, fico com o tio Aury e com o publicano.